O reencontro
D’artagnan observava consternado, montado sobre o seu cavalo negro no topo da colina o pequeno convento, que se avistava ao fundo do vale. Era ali que ela estava, após dez anos de mágoas o ciclo teria que se fechar. Tudo começara com ela e com ela tudo teria que acabar!
A trote, o fogoso animal desceu a colina, aquele grande negro frísio musculado pouco tinha a ver com o pequeno Rocinante, agora velho e demasiado cansado para as aventuras militares do dono, dera a Atlas a sua sela, pastava livremente, até ao final dos seus dias pelos vastos prados a redor de Paris.
Ao chegar perto do convento D’artagnan sentiu-se apreensivo, teria ela mudado? Como ele mesmo mudara? Já não era o jovem inocente, que viera para Paris em busca de um sonho, era sim um homem feito e maduro, no furor dos seus trinta anos, mas agora constantemente preocupado com o futuro. Nestes dez anos que passaram combatera em guerras e foram demasiadas batalhas, mais do que aquilo que ambicionara enquanto jovem Cadete de Mosqueteiro, agora ele, Charles d’Artagnan, era Capitão dos Mosqueteiros, um cargo que nunca ambicionara, nem o peso nem a responsabilidade das vidas a seu cargo. Vira morrer nos seus braços demasiados companheiros e vira partir demasiados bons amigos. Alguns levados não pelo gume afiado da espada inimiga, mas pela traição, ou pelo que julgaram todos ter sido uma traição à amizade… a amizade que os unia.
Desmontou, e após um ligeiro afago a Atlas, tocou a sineta do portão principal do convento, por momentos houve silêncio, que o fez tocar de novo com mais energia o pequeno instrumento. Passos lentos aproximavam-se, um pequeno postigo no portão abriu-se, tudo que D’artagnan pode vislumbrar foi os olhos de uma mulher já idosa.
- Que desejais, bom homem?! – averiguou a freira.
- Boa tarde, Irmã! – retirou o chapéu da cabeça e passou a mão pelo bigode e pêra que deixara crescer– Procuro alguém que está a viver convosco!
- E quem será esse alguém, jovem?! – semicerrou os olhos, reparando na capa de mosqueteiro que este trazia.
- Quem procuro, boa Irmã, dá pelo nome de Renée d’Herblay… ou talvez mesmo Aramis… - o nome saiu-lhe apertado da garganta.
Houve um longo silêncio da parte da freira, estaria a tentar lembrar-se ou a imaginar uma desculpa credível de momento?
- Desculpai… não está aqui ninguém com esse nome! – dito isto puxa o postigo com força.
D’artagnan mete a mão neste praticamente entalando os dedos.
- Irmã! Pensai novamente! – forçou a abertura do postigo - Uma mulher a rondar os seus quarenta anos, loira, de olhos claros…azuis… provavelmente com alguns trejeitos masculinos ao falar! Sei que ela está cá, porque me mentis?! – indagou descontente - Não é a mentira, um pecado mortal aos olhos de Deus, Irmã?! – ergeu a voz mais do que aquilo que queria.
Relutantemente, após um prolongado suspiro, a mulher abriu os portões a D’artagnan, este entrou rapidamente, mal coube entre estes, olhou em volta com ansiedade.
- Quem procuras mosqueteiro, está na capela de São Demétrio! – apontou na direcção desta.
- Agradeço-vos, podeis ter salvado uma vida hoje… - beijou a mão da velha mulher em agradecimento.
- Terei?!… meu rapaz, cabe a Deus salvar vidas, a mim somente as guiar! – afastou-se lentamente de D’artagnan.
A pequena capela de São Demétrio… o santo protector dos soldados, estava vazia à excepção daquele vulto tão reconhecível de joelhos junto ao altar, mesmo dentro daquelas roupas brancas singelas e eclesiásticas, D’artagnan podia ver aquela, que em tempos lutara a seu lado e lhe salvara tantas vezes a vida. A quem chamou em tempos de “amigo” e “irmão d’armas” a quem jurara dar a sua própria vida, caso fosse necessário.
Não foi preciso sequer falar para D’artagnan, os seus passos, aquele som familiar das botas militares a tocarem no mármore da capela, acordaram Renée do momento de reflexão em que encontrava que ergueu a cabeça em direcção ao altar, implorando em silêncio que não fosse quem pensava ser, os olhos tremia-lhe com as lágrimas que se recusava a deixar sair. Poderia ser qualquer um dos três, que abandonara dez anos antes… encontraram-na. Num impulso ergueu-se e voltou-se em direcção ao homem que se aproximava dela. Podia sentir o coração a bater cada vez mais depressa a cada passo que D’artagnan dava na sua direcção. Este parou mesmo em frente dela, os olhos de ambos observam-se, os dez anos que passaram tinham deixado as suas marcas nos rostos de cada um. Mas, as marcas interiores eram bem mais profundas que as visíveis. Renée baixou a cabeça não suportando continuar a olhar daquela maneira para D’artagnan.
- Olha para mim, Renée… olha bem… para mim! – havia revolta na sua voz, raiva controlada.
- Charles.. eu… - não conseguia falar.
- Como pudeste abandonar-nos… Renée?!- agarrou-a firmemente pela roupa puxando-a para si.
- Não.. – soltou-se dele, irada - tu viste como os outros reagiram! Não me queriam por perto! Odiaram-me!
- E com cobardia, fugiste… novamente! – gritou-lhe. – Fugir na vida foi tudo que soubeste fazer!
A voz de D’artagnan ecoou pelas paredes da capela, causando de imediato o choro em Renée que se deixara cair sentada sobre um dos bancos da capela.
- Desapareceste, sem deixar rasto, quando podias ter ficado! – agarrou-a pelos ombros agitando-a - Onde estavas Renée, quando a Milady matou a Constance? – a voz tremeu-lhe -Onde estavas tu quando a enterramos?! Onde estavas, quando precisei de a chorar?! TRAISTE-NOS! Tudo por medo de enfrentares o Athos e o Porthos! Como pudeste fazê-lo?! DIZ-ME! FALA DE VEZ! – Havia revolta mas não ódio nas suas palavras.
Renée ergueu a cabeça para D’artagnan, não haveria palavras que justificassem os seus actos. D’artagnan, completamente irado com a inércia de Renée dá-lhe um forte estalo que a deixa atordoada agarrada aos assentos da Capela. Merecia aquilo e muito mais, era verdade que fugira para não encarar Athos e Porthos a dor era demasiada. Não aceitaram, como D’artagnan tinha, o facto de ela ser uma mulher, como ela pensara que um dia fariam quando a verdade fosse revelada, em vez disso, repudiaram-na… ainda ecoavam na sua cabeça os gritos de indignação de Porthos contra ela e o olhar incrédulo e magoado de Athos.
- Vieste para me condenar então, Charles?! - limpava nas costas da mão o fio de sangue que lhe escorria pela boca.
- Não, Renée… Não… - abanou a cabeça – tu já condenaste-te a ti própria, há dez anos atrás!
- Então que fazes aqui?! Pedi tanto ao Capitão para que nunca revelasse…
- O Capitão está morto… - disse secamente.
Renée olha-o com angústia de ter recebido assim a notícia da morte do homem que via como pai e mentor, por quem nutria um profundo amor e agredicimento.
- Não… como?! – estava incrédula.
- Uma queda aparatosa do cavalo… o Sr. Tréville já não era muito jovem… a ferida não chegou a sarar… - suspirou. – Morreu da infecção…
- Oh, meu Deus … - cobriu o rosto com as mãos.
- Somente no leito de morte disse onde estavas, porque lhe implorei! Aramis… Renée preciso de ti agora mais que nunca, o Athos e o Porthos precisam de ti!
- Ninguém precisa de mais de mim… - voltou-lhe as costas.
- Achas que não? O Athos anda sempre embriagado desde o dia que desapareceste… - Renée gelou com a noticia – O Porthos pouco sei dele, sei que se casou… que passa os dias a maltratar a criadagem… a gritar-lhes… Renée, tens que voltar, só tu os podes salvar das sombras de homens que se tornaram! Eles não queriam ser cruéis naquele dia, e isso consome-os até hoje!
- Não te posso ajudar… - disse-o quase em surdina.
- Como, podes dizer isso? Esqueceste por completo a nossa amizade, aquilo que um dia juramos, de espadas cruzadas… “um por todos”…?!
Houve um silêncio terrível entre os dois. D’artagnan estava perplexo pela mudez de Renée. Abanou a cabeça sem acreditar. Voltou-se em direcção à saída da capela, revoltado olhou uma última vez para Renée que se mantinha em silêncio a olhar para a parede lateral da Capela como que a tentar ignorar a presença de D’artagnan.
- Não foste só tu que perdeste a amizade deles naquele dia, eu também os perdi, pois sabia o teu precioso segredo e guardei-o, para quê? … para ver depois o Athos e o Porthos pedirem, graças a isso, a demissão do Corpo de Mosqueteiros, deixando-me a mim também, sim ARAMIS, és tudo que eles disseram que eras e muito pior… TRAIDORA! – enraivecido atira para os pés de Renée a capa de mosqueteiro – Já que esqueceste o significado dessa farda, que um dia vestiste, podes pegar-lhe fogo, não vale a pena guarda-la.
Renée não conseguia falar, o nó na sua garganta impedia-a de prenunciar qualquer tipo de palavra. D’artagnan caminhou a passos largos para a saída, parando somente nas suas arcadas.
- O meu filho… foi raptado… pensei que ao menos vocês… - saiu rapidamente da capela.
Renée pode ouvir o som proveniente dos cascos do cavalo de D’artagnan enquanto este partia dali a galope, Trémula agarrou na capa caída aos seus pés e abraçou-a, caindo de joelhos no chão da capela, a chorar. Uma mão pousou sobre a sua cabeça, era a Irmã que falara anteriormente com D’artagnan. Renée abraçou fortemente a velha mulher.
Após varias noites sem dormir, o sono finalmente dominara D’artagnan, nada correra como previra… Aramis… Renée era de facto uma traidora como todos afirmavam… nem se comovera com a noticia que o filho que tivera com Constance estava desaparecido, levado a meio da noite por estranhos… como podia ter mudado tanto, pensando bem também ele mudara… a própria Paris mudara.
D’artagnan acordou em sobressalto do seu sono precário quando sente algo a cair-lhe sobre o corpo, num ápice pega na espada para vislumbrar um vulto que conhecia.
- … “e todos por um”! – falou o vulto.
- Aramis! – repara na capa que esta tinha atirado sobre ele.
- Não mereço envergar mais essa farda… mas, jurei algo um dia a um amigo… e pretendo cumprir… espero que não seja tarde! – disse com a voz tremula.
D’artagnan abraça-a.
- Eu sabia… não podia ser… - riu-se com prazer.
- Poderás algum dia me perdoar, D’artagnan?!
- Que achas que é este abraço?! – apertou-a de encontro a ele - Mas, porquê?
- Tinhas razão… tive medo de os enfrentar… ainda tenho… - Aramis suspirou.
- Eu estarei lá… - sorriu-lhe.
Não fora fácil para D’artagnan trazer-los até ali, ao pé da mesma árvore onde um dia quase esteve prestes a travar um duelo com eles, Athos e Porthos pareciam aborrecidos de ali estar, das memórias do local e tudo o resto. Athos estava sentado junto à árvore a beber como era agora seu costume, de roupa suja e com o cabelo a condizer parecia mais um mendigo. Porthos parecia sentir a falta das mordomias do seu palacete. Sacudia a roupa de poeira imaginária, parecia mais um pavão dentro das suas roupas demasiadamente vistosas para alguém do seu tamanho, sempre fora vaidoso mas aquilo era um exagero.
- O que estamos afinal aqui a fazer?! –disse Athos de voz arrastada. – Disseste que tinhas algo importante a dizer-nos, mas até agora ainda não abriste a boca, se não falas vou voltar à taverna, onde está uma mulher bem quente à minha espera. – bebeu avidamente o que restava na garrafa e atirou-a fora – Com licença!
- Não. - D’artagnan segurou-o. – Espera!
-Solta-me! – empurra-o.
- Não é o D’artagnan que vos quer falar … - ouviu-se uma voz familiar sair das sombras – sou eu! – Renée avança.
Porthos ficara pasmo ao vê-la, sim era ela, mesmo sem o seu longo cabelo loiro que agora dava-lhe somente pelas orelhas. Porthos mesmo tendo passado dez anos reconheceu-a imediatamente, envergava o mesmo tipo de roupas masculinas do seu passado, mas agora já sem a preocupação de ter o peito ligado, podia ver-se claramente as suas formas femininas mesmo por debaixo do gibão. Porthos franziu as sobrancelhas e olhou para o lado como que a negar que ela… sim ela… estava ali. Athos cambaleante aproximou-se, D’artagnan segurou-o temendo que este a agredisse, Athos empurra novamente D’artagnan com desdém, aproxima-se de Renée. Agarra no rosto desta com uma das mãos e empurra-a de encontro à árvore.
- Afinal se calhar não tenho que ir até ao bordel! – tresandava a vinho. – Afinal uma mulher é sempre uma mulher! – inclinou a cabeça sobre Renée, como quem se preparava para a beijar.
Renée sem pensar muito, agiu instintivamente, dando de imediato uma forte joelhada nas virilhas de Athos, obrigando este a cair de joelhos no chão e tentar de alguma forma acalmar a dor aguda e subida que sentira. Porthos riu-se com o sucedido parando de imediato para voltar a ter de novo aquele ar sério, que tentava manter.
- Olha para ti Athos… e para ti Porthos… deviam ter vergonha ao que chegaram! – estava incrédula.
- Nós?! – disse Athos que se tentava então erguer do chão. – Nós?! – Riu-se com desdém.
- Tu é que devias ter vergonha na cara, mulher! - replicou de imediato Porthos.
- É esse o facto que não aceitas Porthos… o de eu ser uma mulher?! – olhou-o fixamente.
Porthos olha para o lado incomodado com o olhar fixo de Renée.
- Se soubéssemos que tínhamos uma mulher entre nós, todas aquelas noites em que estivemos acampados teriam sido muito mais… agradáveis. – zombou Athos.
Renée, revoltada com a falta de respeito, agarra de imediato Athos pela roupa e empurra-o de rompante contra o tronco da árvore, fazendo este gemer com o impacto forte sobre as suas costas.
- PÁRA ATHOS! Estás a começar a meter-me nojo! – gritou-lhe Renée.
- Ora… Ora… aposto, que até ias delirar! – riu-se.
Renée soca-o no estômago e atira-o com desdém para o chão, Athos mesmo dorido não parava de rir.
- Vocês os dois! – diz Renée a d’Artagnan e Porthos – Agarrem-me neste tipo e tragam-no à força se necessário, vamos pô-lo sóbrio de vez!
Os outros dois assim o fazem, Porthos ainda que algo relutante em obedecer ao pedido de Renée. Arrastam Athos, que se debatia, até à beira do rio.
- Atirem-no lá para dentro! – apontou para a água.
- Enlouqueceste? A água a esta hora da noite está gelada! – replicou Porthos.
- Melhor ainda! Atirem-no! – respondeu-lhe.
Assim o fazem, Athos mal se sentiu dentro das águas geladas do Sena quase saltou de uma só vez para fora de água, sendo empurrado de novo lá para dentro por Renée, que se atira juntamente com este forçando-o a mergulhar. Athos atarantado pelo frio e pelo tratamento de choque que Renée lhe aplicava debatia-se contra esta sem grande sucesso.
- O que é feito do Athos que conheci?! Acorda Athos! – empurrava novamente Athos para baixo de água.
Renée só o deixava vir ao de cima para respirar, Athos já com uma certa falta de ar grita-lhe.
- N… não… Aramis chega!… Estou acordado… estou acordado…! – empurra-a.
Athos tenta chegar à margem mas cai dentro de água novamente, estava completamente desorientado, Renée arrastou então Athos para a margem. Porthos afastou-se ligeiramente, com aquele sorriso de “eu não preciso de banho”, após Renée o ter olhado de esguelha.
- D’artagnan, podias acender uma fogueira? Vai ser uma longa noite… - suspirou Renée. – Porthos ajuda-me a despi-lo.
- Despir??...
- Sim, dentro destas roupas molhadas ficará doente! – arrancou-lhe o gibão.
- Certo… mas e tu? – disse-o a medo.
- De mim cuido eu, agora ajuda-me! – puxava-lhe pela camisa.
Athos estava um autêntico peso morto, semi-desmaiado com o efeito do álcool, mas continuadamente a praguejar, com tratamento que estava a receber dos ex-companheiros, foi uma pequena aventura arrancar-lhe toda a roupa encharcada e imunda, que este não devia mudar há semanas. Estoirado Athos foi deixado a dormir enrolado numa das capas dos camaradas.
Renée estava encostada à árvore também ela enrolada numa capa, e observava Athos, suspirava de alívio por ter conseguido acalmar Athos ao ponto deste adormecer, de certo dormiria até de manhã. Porthos estava sentado junto à mesma árvore e mirava-a, sorriu disfarçadamente, apesar de tudo que tinha ficado para trás naqueles dez anos, era bom tê-la ali junto a eles… somente naquele momento Porthos percebeu-se do quanto sentira a sua falta, num impulso, ergueu-se e para surpresa de Renée este abraça-a a chorar.
D’artagnan que afagava o seu cavalo junto ao rio suspirou de alivio, ao ver aqueles dois abraçados, tudo parecia estar a reconciliar-se aos poucos, apesar das profundas feridas do passado.